"Um jovem deixou de ir ao WC. Tinha bacio junto à cadeira de 'gaming'"

Ivone Patrão, psicóloga especialista em Saúde Mental e Bem-Estar Digital, acaba de lançar o livro 'Ainda Vamos a Tempo - O que Podemos Fazer para Resgatar os Nossos Filhos dos Ecrãs' e o Notícias ao Minuto esteve à conversa com ela.

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© Foto cedida por Ivone Patrão

Natacha Nunes Costa
23/05/2025 08:17 ‧ há 7 horas por Natacha Nunes Costa

País

Ivone Patrão

A psicóloga clínica Ivone Patrão, especialista em Saúde Mental e Bem-Estar Digital, lançou recentemente o livro 'Ainda Vamos a Tempo - O que Podemos Fazer para Resgatar os Nossos Filhos dos Ecrãs'

 

No livro, editado pela Contraponto, a especialista, que já coordenou vários estudos relacionados com o tema da ciberdependência e da cibersegurança dos jovens, dá várias dicas para o uso saudável dos ecrãs e estratégias para os pais se conseguirem reconectar com os filhos e protegê-los dos perigos das tecnologias.

Do scroll ininterrupto feito muitas vezes em família, aos adolescentes fechados nos quartos "a viver nas redes sociais uma vida paralela para a qual não convidam os pais", como escreve Ivone Patrão no livro, há mudanças que imperam ser feitas para que as relações não se desgastem ainda mais e de forma irrevogável, com consequências desastrosas para as relações humanas.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Ivone Patrão recorda a série 'Adolescência' e dá alguns exemplos de situações "muito graves" que acontecem também por cá, em Portugal. Como por exemplo, o caso de um jovem que deixou de ir à casa de banho devido ao vício em jogos online.

Da falta de empatia à partilha de nudes, da violência psicológica e discurso de ódio à venda de conteúdo para sites pornográficos, são muitos os malefícios do uso sem regras, sem horários e sem monitorização dos ecrãs.

Mais do que números - que também apresenta nesta entrevista - a psicóloga mostrou-se preocupada com este "triângulo amoroso" entre nós, os outros e a tecnologia, onde os primeiros dois envolvidos tendem a sair, mais tarde ou mais cedo, com o coração partido. 

Todos que podemos estar ciberdependentes e podemos não estar ciberseguros

Acaba de lançar o livro 'Ainda Vamos a Tempo – O que podemos fazer para resgatar os nossos filhos dos ecrãs'. Que mudanças urgentes temos de implementar já para construir uma dinâmica saudável com a tecnologia e para nos voltarmos a reconectar uns com os outros, em família e não só?

É mesmo muito importante, aos dias de hoje, reconhecermos todos que podemos estar ciberdependentes e podemos não estar ciberseguros. O primeiro ponto é reconhecermos que a tecnologia não tem só um lado bom e benefícios, que há risco de ciberdependência e risco de estarmos inseguros online. O segundo é olharmos para quem precisamos de proteger. As crianças não nascem ensinadas. Os adolescentes também não e o que é facto é que nós entregamos presentes quadrados e retangulares - tecnologia - nos aniversários e Natal e não vêm com uma conversa, com um acordo, com uma negociação. Vêm com um laço, com um embrulho. Não vêm com a partilha do que é que se deve fazer para utilizarmos essa tecnologia para corrermos menos riscos. Riscos para a nossa saúde psicológica e também física, porque se ficarmos muito tempo curvados a olhar para o ecrã e a mexer nele com as mãos também têm consequências a nível da postura e do sedentarismo. Temos de proteger as nossas crianças e ar-lhes uma mensagem clara. E é nesse segundo ponto que é importante unir pais, professores, avós, tios, toda a gente. É preciso conversar, de acordo com cada faixa etária, de acordo com as características de cada criança e do jovem, de acordo com o contexto. E essa é apenas uma primeira conversa. É uma conversa inicial: 'Vamos lá concordar como é que vamos usar o dispositivo'. Depois vão sempre acontecer situações de testagem de limites, de dias em que não se cumpre o acordo e tem de haver consequências sobre isso, tem de haver uma nova conversa, uma partilha sobre isso.

Ainda existem muitos pais a oferecer tecnologia sem regras e sem limites?

Sim! E isto é como um jogo de futebol. Sem regras, sem limites, sem balizas e sem o árbitro isto não tem qualquer sentido. Estamos em muitos lares sem regras e sem balizas, com crianças e jovens a usar tecnologia horas e horas e horas a fio. A assistirem a conteúdos que não são adequados para a sua idade. O número de horas não é o único critério de dependência. Estamos perante dois riscos ao mesmo tempo. É isso e em que é que os conteúdos possam ter impacto para a saúde psicológica da criança e jovens. Uma criança ainda está em desenvolvimento, um jovem ainda está em desenvolvimento. Têm as suas vulnerabilidades associadas ao desenvolvimento e se está a ver conteúdos desadequados à idade, está em risco.

A exposição a conteúdos que não são adequados está a normalizar a violência, a normalizar o discurso de ódio, mais abusivo, mais agressivo

E que conteúdos andam os jovens a ver?

Isso aí... é um mundo. Desde as questões das relações às questões da sexualidade. Questões do jogo, compras, violência. O que é que de facto eles estão a consumir? E mais uma vez reforço, o que eu digo aqui no livro não é só investigação e experiência clínica, mas também de revisão de outros colegas de investigação, nacional e internacional. E há consenso. A exposição a conteúdos que não são adequados está a normalizar a violência, a normalizar o discurso de ódio, mais abusivo, mais agressivo. E, do ponto de vista do desenvolvimento estamos a assistir a jovens que não desenvolvem 'softskills', por exemplo, a questão da empatia. Os estudos comprovam claramente que, aqueles que têm conduta mais agressiva, que estão mais dependentes da tecnologia têm muito pouca empatia, ou seja, consegue pouco colocar-se no lugar do outro, compreender o que é que o outro está a sentir, a dizer. Podem não estar ciberseguros e isso tem impacto no seu desenvolvimento.

Ou seja, não é só estabelecer limites de tempo, mas também de estar atentos aos conteúdos visualizados...

Eu costumo dizer que tenho más notícias. Más notícias que depois, a médio e longo prazo, podem ser boas notícias. Não é só oferecer tecnologia; também temos de a supervisionar. E a variável supervisão é das mais importantes para isso correr bem. Não é atribuir nenhuma culpa aos pais, nem é pôr-lhes o peso todo em cima, nem tem de ser um 'control freak'. Dando exemplos práticos: Não colocamos uma criança de dois anos sozinha a atravessar a estrada, supervisionamos. Não colocamos uma criança de dois anos à beira de uma piscina sem estarmos ao lado dela, supervisionamos. Até queremos ensinar a nadar, tem de se treinar, às vezes consegue-se outras vezes não. Leva tempo. Para autonomizar. E com as tecnologias é igual. Atravessar a rua é a mesma coisa. Há vários os, vamos ensinando, treinamos, acompanhamos. Aqui é igual, não há diferença. Aliás, a diferença é que a tecnologia está sempre a evoluir. Agora até temos a inteligência artificial. Podemos estar a olhar para um conteúdo, estar a olhar para aquela conversa e pode até nem ser com uma pessoa. Pode ser com um avatar [risos]. Estamos sempre a acrescentar nuances que complexificam a supervisão. Porém, não podemos baixar os braços. Não podemos desistir até porque a tecnologia está sempre a evoluir e eles [jovens] são muito criativos a utilizar a tecnologia.

A supervisão é, de facto, uma das variáveis mais importantes e vemos que quando trabalhamos isso em consulta, resulta. Não é retirar a tecnologia, é convivermos com a tecnologia, dando-lhe um bom uso. Um impacto positivo. E não quero nada ar uma mensagem de culpa. A mensagem que quero ar é: temos de fazer essa supervisão, está inerente à função dos pais. Se a tecnologia ajuda? Entretém? Até pode ser, mas não pode ser a única que dá colo, a única que conversa com eles, que os valoriza. Isso é que não pode ser.

Se não mando a criança atravessar a estrada com dois anos, também não a deixo com um tablet com dois anos, sozinha. É igual

E que conselhos dá aos pais para reduzir os riscos de ciberdependência e insegurança?

Não é aos 16 anos que nós vamos ficar com as 's' das redes sociais, do e-mail e do telemóvel. Não é nessa idade. Esse trabalho tem de ser feito muito antes. Na infância, os dispositivos até nem são da propriedade deles. O tablet é lá de casa, o computador é lá de casa, o telemóvel que se empresta. E, enquanto pais, temos o às plataformas e palavras-e utilizadas, sendo que as crianças ainda não têm idade para usar redes sociais. E é neste caminho, de conhecer a criança, de ver como é que ela se relaciona com o uso da tecnologia que se vai laçando e dando responsabilidade e confiança. Portanto, isto é um caminho, exatamente como atravessar a estrada, como falávamos há pouco. Se não mando a criança atravessar a estrada com dois anos, também não a deixo com um tablet com dois anos, sozinha. É igual. É também importante, aos poucos, progressivamente, ando a responsabilidade e a confiança de que já consegue ter momentos sozinho, que já consegue fazer boas escolhas, que se acontecer alguma coisa faz partilha.

E como é que se constrói essa confiança de que fala e que é essencial para os jovens partilharem o que se a com eles, o que andam a fazer nas redes sociais, etc?

Tem de haver esta disponibilidade para partilha. Frases como: 'Olha, já viste isto que me mandaram?' ou 'Este vídeo veio a seguir ao outro, posso ver este?' ajudam a criar esse espaço. Tem de haver este espaço, não só de supervisão, mas também de exercitar a partilha. Que não seja uma partilha com juízos de valor. 'Ah isso não é bom', 'tu é que erraste', 'já escolheste mal'. Tem de ser: 'Ah, apareceu? Deixa ver', 'Se calhar não é adequado'. Com juízo crítico. Se nós treinarmos o espírito crítico, eles próprios vão ser críticos noutras coisas que vão vendo, é importante que desenvolvam essa aprendizagem do que é que pode ser adequado para a sua idade ou não, assim como do ponto de vista geral. O que é adequado estar publicado? Ser partilhado? O que é que é íntimo, privado e não é público? Este tipo de diálogo é que é muito importante na família. Nós neste momento ainda temos pais e mães que não nasceram nem cresceram com tecnologia, que não a tiveram nem na infância, nem na adolescência. Há um 'gap' geracional aqui. E, nestes casos, eu costumo dizer que eles estão todos 'tecnoapaixonados' [risos], porque estão os pais a desfrutar do encantamento pela tecnologia, ao mesmo tempo que os filhos. E o que é que acontece quando estamos apaixonados? Só queremos estar com aquela pessoa, neste caso, com a tecnologia. As regras são mais laças, não há tantos limites. Estamos na fase da paixão, vamos a todo o lado com a tecnologia, não dormimos, estamos horas a conversar [risos]. Isto pode parecer um pormenor, mas está a acontecer em muitos lares. Os pais estão a dar o exemplo que não é o modelo que deve ser dado do uso da tecnologia. Estão todos apaixonados ao mesmo tempo, sem regras.

 Os tablet, os telemóveis, a televisão, antes da hora de deitar devem deixar de existir. O que deve existir é uma história, uma conversa

E que regras gostaria de destacar como ponto de partida?

A tecnologia não deve estar na receção, não deve ir para a cama – e eu explico bem isso no livro 'Ainda Vamos a Tempo'. A hora da refeição, por exemplo, é daqueles momentos fantásticos para treino de competências emocionais e sociais em família. A forma como comunicamos, como olhamos para o outro, como ouvimos uma crítica construtiva, como damos '' a um irmão ou ao pai. Ou tiramos dúvidas. E se estivermos com a tecnologia, perdemos essa oportunidade. Na hora de deitar, até por uma questão física e de higiene do sono temos de evitar as tecnologias. Elas impedem a produção da melatonina, a que se produz ao fim do dia, que é a substância que nos permite ter uma melhor higiene do sono e que não se produz quando temos som e luz. É como se estivéssemos a enganar o cérebro: 'Olha, é de dia, não precisas produzir melatonina, nem vais descansar'. Só que nós já estamos cansados. Portanto, os tablet, os telemóveis, a televisão, antes da hora de deitar devem deixar de existir. O que deve existir é uma história, uma conversa. Aqueles cinco minutos de atenção de qualidade fantásticos resultam muito bem. Quando o adulto está disponível. Não são cinco minutos a correr. São cinco minutos de disponibilidade. Estas são, por exemplo, regras básicas que nos vão ajudar a fazer uma melhor gestão da tecnologia e a menos dependência e a treino de outras competências offline.

No seu livro deixa claro que a dependência da tecnologia não afeta só os mais jovens, está a afetar todo o tipo de relações...

Sim, aliás, uma das prioridades que abordo é mesmo a relação. Como é que eu vou relacionar-me, será que vivemos em triângulo amoroso? Será que sou eu, os outros e a tecnologia? Que importância é que eu estou a dar a mim próprio, aos outros e à tecnologia. Tudo o que nós vemos é que não estamos a dar nem importância a nós, nem aos outros. Estamos a dar importância à tecnologia, porque é ela que nos atualiza, é ela que tem os os todos, que tem as coisas para trabalhar, a plataforma da escola, dá likes, likes, likes, que nos permite usufruir de hobbies, como os jogos online. Mas se começamos a viver nesse triângulo amoroso e começarmos a dar mais importância à tecnologia, nós vamos perder uma data de coisas que as relações nos dão. E perdemos. Temos de olhar para o nosso autocuidado, explorar outras valências que não sejam as tecnológicas. Precisamos estimular as nossas competências humanas e sociais. Se não, ficamos 'hikikomoris', que é um termo japonês, que tem sido muito estudado no Japão e que também já estudamos em Portugal. Os 'hikikomoris' são pessoas que só se relacionam com tecnologia, que há anos que já nem veem pessoas em presença. E isso está relacionado com a psicopatologia. São pessoas muito mais deprimidas, ansiosas e com outro tipo de psicopatologias geralmente associadas. Portanto, a relação com os outros e de forma presencial é algo que nós nunca podemos perder. O nosso cérebro precisa do toque, do cheiro, do abraço, do olhar. Continuamos a precisar disso tudo.

Qual a dimensão do problema?

De acordo com a última revisão de literatura, das últimas duas décadas, que reúne 504 estudos, com 2 milhões e tal de indivíduos recolhidos, de 64 países, de todas as idades, aquilo que se vê é que a prevalência da tecnologia aumentou de uma década para outra e estamos com percentagens de 27% de dependência do telemóvel, 17% da dependência das redes sociais, 14% do ponto de vista geral, da dependência online, na internet, de uma forma genérica, 8% de dependência do cibersexo e 6% de dependência do jogo online. Quando falamos destas situações de dependência, estamos a falar de dependência mesmo, não é risco de dependência, é mesmo dependência.

E em Portugal?

Em Portugal, os estudos da dependência online têm bastante variabilidade. Há amostras que temos 10%, outras temos 15%, outras temos 8%, outras 12%. Mas não há muita discrepância, mesmo quanto à dependência do telemóvel, temos por cá estudos que indicam que é de 20%, outros 15%, 21%, 17%. Já tivemos 25%. Há variabilidades, por exemplo, de acordo com a zona do país. Mas não são diferenças significativas. Temos é que olhar para o que isto significa e eu falo disso no meu livro, uma vez que investigo este problema há mais ou menos 15 anos. Estes números são os que contam no máximo na escala de dependência do telemóvel. São os que têm os critérios todos. Mas há quem tenha menos um critério e já não está nesta percentagem. Porém, está em risco na mesma. Por isso, eu costumo dizer. São 27% que têm dependência do telemóvel e quantos estão em risco, quase a lá chegar? Às vezes são 40%. Portanto, de repente, posso estar a abrir uma notícia a dizer: '27% estão em risco e 40% estão quase lá'. Isto é muito sério.

Basta sair à rua e percebemos. Nos transportes, num restaurante. De facto, nós estamos muito tempo online, consumimos muitos conteúdos online. Estamos a privilegiar o mundo online. E os estudos que tenho feito junto de jovens dos 12 aos 25 anos não são muito discrepantes destes que lhe estou a dar. Se olharmos para uma escola, vão sempre existir crianças e jovens que estão dependentes. Vamos ter de ter um olhar de intervenção mais direta e de ajuda direta a estes que estão dependentes e vamos ter de ter uma linha de prevenção para que os que não estão dependentes não entrem na linha de dependência.

Eu compreendo que algumas escolas tenham feito uma espécie de 'reset' e que tenham de começar do zero e agora não há telemóveis. As pessoas não sabem e não houve notícias disso, mas aconteceram em algumas escolas situações muito graves do ponto de vista da dependência, da violência e do ponto de vista dos ciberriscos

Aproveitando que estamos a falar das escolas, o que pensa sobre a proibição de telemóveis nos estabelecimentos de ensino?

Eu participei num grupo de trabalho do Ministério da Educação relativamente às recomendações que saíram em janeiro para todas as escolas e uma parte das recomendações é exatamente sobre o uso do telemóvel. Cada escola deve avaliar o que é que está a acontecer e tomar as suas próprias medidas. Eu compreendo que algumas escolas tenham feito uma espécie de 'reset' e que tenham de começar do zero e agora não há telemóveis. As pessoas não sabem e não houve notícias disso, mas aconteceram em algumas escolas situações muito graves do ponto de vista da dependência, da violência e do ponto de vista dos ciberriscos. Situações que só vêm a público quando já são extremados. Mas muitas vezes já fizeram um caminho e já impactaram em muitas crianças, em muitos jovens e durante muito tempo. A partilha de imagens, tudo o que anda à volta do 'ciberbullying' e de discursos de ódio, como a série 'Adolescência' retrata. Não quer dizer que os 'incels' sejam o problema mais comum entre os nossos jovens, mas é uma das comunidades para as quais os jovens podem ser resgatados.

Há muitas comunidades online, umas mais positivas do que outras e algumas não são nada positivas e têm, de facto, um discurso de ódio, negativo. E nós, enquanto adultos – professores, pais - que não andamos a supervisionar o telefone dos alunos e filhos, não conseguimos perceber o que é que realmente se está ali a ar. Isto vai ao encontro daquilo que eu estava a dizer há pouco. Se formos introduzindo a tecnologia com partilha, também partilhamos os nossos interesses, percebemos quais são os interesses deles online. Quanto mais partilha houver, com respeito pela sua privacidade, melhor. E lá está, não é preciso ser um 'control freak'. Tem é de haver um 'treino da partilha'. Juízo crítico, mas sem juízos de valor. Assim vamos conseguindo ter alguma proximidade e que partilhem connosco algumas dúvidas e algumas situações menos corretas que possam acontecer online. Se entrarmos a matar – 'Ai que horror' – nunca mais vão partilhar connosco.

Mas voltando à questão das escolas. Eu compreendo o 'reset', mas a minha sugestão é decidirem com os jovens, não para os jovens, e com os pais. Se a comunidade estiver toda de acordo – ou a maioria, vá – mais facilmente as medidas vão ser cumpridas. E deixa de haver esta necessidade de controlo e de falarmos desta palavra que é 'proibição'. Agora, tal como o Cristiano Ronaldo não está o dia todo a fazer abdominais também não é suposto um jovem estar o dia todo num telemóvel. As regras e os limites devem ser discutidos entre todos, mas tem de haver bom senso. Tal como não estamos o dia todo a ler um texto de português ou a fazer um cálculo de matemática, nem a fazer educação física na escola, também não há necessidade de estarmos o tempo todo no telemóvel. Obviamente, tem de haver regras e limites, assim como há regras e limites para o uso de uma bola numa escola. Não vamos jogar à bola dentro de uma sala. Não quer dizer que não levem a bola para dentro da sala de aulas, mas lá está, temos de estar preparados para isso e para as consequências. Os telefones foram para as escolas sem regras e sem limites e agora, de repente, conquistamos isso e agora tem de haver regras e pode ser uma chatice. Parece que perdemos direitos. Mas é necessário voltar atrás. 

Porque é que defende que as regras devem ser estabelecidas por cada uma das escolas e não no geral?

Há aqui muitos tons de cinzento, por isso, cada escola deve avaliar que problemas é que já teve, que regras é que se adequam à sua comunidade e que limites é que têm de implementar. Isso sempre com o acordo de toda a comunidade escolar: professores, alunos e pais. Além da supervisão participada, o que se pretende é o treino da autorregulação e isso só é possível se deixarem os jovens experimentarem. Oferecemos regras e limites e eles têm de aprender a saber parar. E nós temos de confiar, porque é importante que eles saibam parar, saibam sair da tecnologia. Aliás, isso é um conhecimento importante para a vida. Para tudo. No início somos nós que regulamos com eles. Não podemos pensar que ditamos regras e que a partir desse momento vão cumprir tudo. É um caminho. Temos de combinar com eles. E não podemos ter medo de aplicar consequências. Se vamos fazer um acordo tem de haver consequências. Um aviso, dois avisos, ao terceiro aviso o telemóvel fica na mesa do diretor e são os pais que têm de o ir lá buscar. Se for só de avisos, estamos sempre a repetir o comportamento.

Quais foram os casos mais chocantes que chegaram até si? 

As situações mais chocantes são do ponto de vista da dependência e da cibersegurança. Quanto à ciberdependência, um dos casos mais chocantes que tive - e em discussão de casos com colegas percebi que não fui a única com uma situação destas, infelizmente – foi, mais ou menos no pós-Covid, de um jovem deixou de ir à casa de banho para fazer as necessidades. Fazia as necessidades num bacio. Ao lado da cadeira de 'gaming', dos seus dois ou três ecrãs e, depois alguém tinha de fazer toda a higiene e limpar. Foi uma situação extrema. Mas já tive mais do que um caso neste sentido, uns com mais gravidade, outros com menos gravidade, com diferentes 'nuances'. Mas todas de dependência extrema, sobretudo do jogo online, em que os jovens deixam de ir à escola e deixam de fazer as refeições em família.

A questão é que, para chegar aqui, já tivemos de ultraar uma data de barreiras. Estas situações são muito graves e muitas vezes têm outras comobilidades, outras patologias associadas, ansiedade social, depressão, PHDA (Perturbação de Hiperatividade / Défice de Atenção), outras patologias já instaladas e a dependência online é só mais uma em cima disso. O absentismo escolar, as más notas, o conflito familiar com violência psicológica e física, desligar do mundo social são alguns dos sinais de que o jovem e a família precisam de ajuda. As situações extremadas são muito mais difíceis de intervir porque o jovem nem sequer reconhece que tem um problema, sente-se confortável naquela rotina. A família é que vem pedir ajuda.

E do ponto de vista da cibersegurança?

Do ponto de vista da cibersegurança os casos mais chocantes estão relacionados com a partilha de imagens, dos nudes, de vídeos de jovens sem consentimento e venda para sites pornográficos. São situações que encontram uma moldura mais do cibercrime e que acabam por ser identificadas. Alguns dos jovens nem sabiam que estavam envolvidos neste tipo de situações porque partilham imagens do âmbito de uma relação que pensam que são de confiança e, de seguida, essas imagens estão a ser expostas para o mundo, para o grupo ou até serem vendidas. E, de repente, podemos ter um filho ou uma filha muito sossegadinho em casa, sem saber o que lhe aconteceu e sai uma novidade dessas. A sua segurança online está em causa.

Este tipo de situações tem aumentado?

Da investigação que tenho feito notamos que há um aumento da comunicação agressiva, abusiva do discurso de ódio entre os jovens associada à falta de empatia. Agora, notícias como a da jovem que fugiu para casa de um homem que conheceu nos jogos online e de crimes como o da série 'Adolescência', que parece ter raízes no 'ciberbullying' e nos incels - que têm este discurso muito negativo, instigador do ódio e machista -, não quer dizer que não aconteça, mas não se percebe é que seja algo exponencial. 

Não quer dizer que haja mais violência física, o que há é mais violência psicológica, porque está à distância de um clique. Estamos a banalizar muito e a validar muito porque uma jovem - o perfil dos jogos online é mais masculino, o das redes sociais é mais feminino – sentada na sala, numa casa, com a família, sossegada a ver as suas redes sociais, ninguém vai dar conta que ela pode estar dependente das redes sociais e do que é que ela está a falar, nem a comunicar, nem a escrever. Parece que até está ali em família. E o que temos estado a fazer é validar que aquilo que ela está a fazer está certo, sem estarmos a ver. Estamos a validar um comportamento quem nem sabemos o que representa. Ela até pode estar a fazer 'bullying' a alguém, por exemplo. No fundo, o que essa jovem vai sentir é validação e este é um dos riscos que podemos estar a correr. Há distância de um clique está a acontecer muito mais violência psicológica, conteúdo verbal agressivo que tem impacto do ponto de vista psicológico e, nas situações que podem partir para violência física, só situações que temos de olhar para outros fatores que são associados, não é só o que se a online. Nós sabemos que há outros fatores de risco associados a quem a ao ato, a quem a para a violência física. Tem a ver com a negligência familiar, fatores do indivíduo, mais impulsivo, como a série 'Adolescência' também relata um bocadinho. a a mensagem dos pais tenham sido um pouco negligentes. A certa altura, o pai até verbaliza: 'Ele estava no quarto e eu achei que no quarto ele estava bem'.

É muito importante olharmos enquanto pais e professores para aquilo que eles estão a partilhar, como é que estão a falar, a comunicar online. Lá está, não é termos o 'control freak' de sabermos tudo e olharmos para tudo. Precisamos é falar sobre isso. E pode ser transversal. Nas disciplinas de português, de cidadania, de história. Isso pode ser um tema e em casa também tem de ser um tema. Assim como nos preocupamos muito que digam 'obrigada', 'bom dia' e 'boa tarde', sejam educados com o outro, também temos de nos preocupar como é que eles falam com os outros nas redes. As pessoas, à distância de um clique, aproveitam-se para tudo. Nós não podemos achar que as crianças porque lidam tão bem com a tecnologia também saibam estar lá. Têm de aprender à mesma. Quem sabe estar lá e a forma de comunicar são os adultos. Podem não ter tanta vivência de tecnologia, mas têm vivência do que é que é comunicar com o outro e o que é que é reagir às situações difíceis, complicadas e como é que se responde, como é que se partilha e o que se partilha e isso tem de ser discutido em casa e treinado. Não podemos partir do pressuposto que só porque elas sabem tanto de tecnologia, já sabem tudo. Não! Podem ter um bom nível de literacia digital, mas falta esta dimensão da comunicação e do impacto para o outro.

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