Newsha Tavakolian, nascida e criada em Teerão, capital do Irão, é membro da Magnum Photos, fotógrafa, artista visual, educadora e conhecida pelo seu trabalho que captura a condição humana.
Tavakolian iniciou a sua carreira na fotografia com apenas 16 anos, tornando-se uma figura proeminente na área. A sua fotografia é caracterizada pela sua narrativa evocativa e o seu olhar aguçado para capturar as delicadas emoções que nos moldam enquanto seres humanos.
Já abordou uma ampla gama de tópicos, desde os desafios enfrentados pelas mulheres no Irão e no mundo, até às consequências das tensões em zonas de conflito. O seu trabalho combina arte com documentário, esbatendo os limites entre a realidade e o imaginário.
No dia 25 de abril, Newsha Tavakolian inaugurou a sua mais recente exposição, 'And They Laughed At Me' ('E eles riram-se de mim', em tradução livre), em Portugal, no espaço NARRATIVA, em Lisboa.
A mostra dá a conhecer uma narrativa fotográfica construída a dois tempos: a autora revisitou o seu arquivo fotográfico, recuperando imagens tecnicamente imperfeitas dos seus primeiros anos como fotógrafa, e cruzou-o com um novo corpo de trabalho intimista e criativo sobre os desafios do dia-a-dia no Irão.
As fotografias, inicialmente destinadas a serem descartadas, oferecem uma visão privilegiada sobre o seu desenvolvimento artístico e o contexto social do Irão durante a década de 1990; a exposição inclui fotografias da vida quotidiana em sociedade, de acontecimentos marcantes do país e de momentos da esfera privada da autora - refletindo uma época de esperança e de reformas sob a presidência de Khatami.
A morte do pai por ataque cardíaco, aos 63 anos, foi também uma das razões para a concretização desta mostra artística. A revolta de Newsha foi a base para algumas das fotografias que poderá ver no espaço NARRATIVA até ao dia 14 de junho.
O Notícias ao Minuto esteve à conversa com a fotógrafa para saber mais sobre 'And They Laughed At Me' e sobre esta mulher iraniana que abandonou a sua carreira de fotojornalista para abrir espaço à sua imaginação artística.
É a primeira vez que exibes uma exposição em Portugal. Como te sentes ao ser convidada para o fazer no nosso país?
Quando fui ada pelo NARRATIVA fiquei muito contente. No ano ado, quando estava a dar aulas aqui, uma das minhas alunas, que era de Lisboa, falou-me de um sentimento, ligado ao ado português - ao período anterior à revolução - e que é semelhante ao que se sente quando se sai de um país em circunstâncias, digamos, difíceis, e que as pessoas levam consigo. Por isso, acho que os portugueses se vão identificar com a minha exposição.
Esta exposição é um retrato íntimo da sociedade iraniana que luta pela liberdade e pela mudança. Como é que representas essa luta nas tuas fotos?
A maneira como vais interpretar este trabalho vai corresponder à tua visão da realidade. Mas para mim é diferente, porque é sobre alguém que deixa para trás um ado que a está a assombrar. Alguém que está a sofrer por causa do ado. Então, através do arquivo, através das minhas próprias fotografias que tirei entre 1996 e 1999, voltei atrás e fiz as pazes com o ado para seguir em frente. É assim que eu interpreto esta exposição.
Tirei fotografias aos pés de alguém durante uma manifestação e decidi escolher aqueles 'frames' do meu arquivo. E depois, quando juntei tudo, percebi que havia ali uma história
E quando é que decidiste que querias fazer as pazes com o ado?
Há cinco anos, o meu pai faleceu e eu fiquei muito zangada. Foi por isso que fui ao meu arquivo. Mas não foi de um dia para o outro, eu não toquei em nenhuma câmara durante um ano, não tirei uma única fotografia. Nem queria tirar fotos ou olhar para nenhuma imagem. Decidi ir ao meu arquivo e selecionar apenas fotografias que nunca foram expostas. Imagens que não são bem compostas ou que foram criadas por acidente. Por exemplo, tirei fotografias aos pés de alguém durante uma manifestação e decidi escolher aqueles 'frames' do meu arquivo. E depois, quando juntei tudo, percebi que havia ali uma história. Mas demorei cinco anos, porque no início só tinha raiva e tudo se foi construindo com a minha raiva. Entretanto curei-me, e depois as outras narrativas entraram no projeto.
© Newsha Tavakolian
Para quem visitar a exposição, que história encontrará nas paredes?
Vão ver a primeira fotografia que tirei quando tinha 16 anos. E depois verão duas linhas, duas histórias paralelas. Uma é pessoal, sobre fotografia, e a outra é sobre o Irão.
E porque escolheste o título 'And They Laughed at Me'?
Na verdade, o título surgiu. Inspirei-me num poeta iraniano. Ele escreveu um poema no qual referiu que foi à prisão para se apresentar. O soldado à porta perguntou-lhe: 'Como é que te chamas?' E ele respondeu: 'O meu nome é Baktash Abtin'. O soldado perguntou-lhe qual era a sua profissão e ele disse: 'Sou poeta'. E ele começou a rir-se. Inspirei-me nisso.
Como tiveste conhecimento dessa história?
Porque era uma história bastante conhecida, ele era um poeta famoso. Mas a verdade é que, ao longo do meu percurso também se riram de mim. Quando não se é um bom fotógrafo, as pessoas fazem piadas.
Sentiste que as pessoas estavam a fazer troça do teu trabalho.
Sim, porque eu era muito nova e não tinha formação. Aprendi tudo sozinha, mas não me importei verdadeiramente. Nunca me incomodou, porque tinha objetivos maiores.
Se eu tiro um retrato, os olhos são mesmo importantes e centrais. Mas nestas fotografias eu não podia mostrar os seus rostos e isso deixou-me frustrada
Algumas pessoas nas fotos desta exposição têm os rostos ou os olhos cobertos com formas, como círculos, por exemplo. O que é que isso representa exatamente?
Esses círculos nas imagens surgiram espontaneamente. Eu estava a trabalhar para a revista Time e pediram-me para fazer um ensaio fotográfico sobre jovens manifestantes na universidade. E, claro, era um assunto muito delicado. Eu fui, encontrei-as, entrevistei-as, mas nenhuma delas queria ser reconhecida nas minhas fotos. Prometi-lhes que faria algo para que fossem protegidas.
Fui para o meu estúdio e tinha alguns círculos autocolantes, porque eu gosto muito de papelaria. Então, decidi colocar os autocolantes no rosto das meninas para o esconder.
Porém, as minhas fotos são sempre acerca dos olhos das pessoas. Se eu tiro um retrato, os olhos são mesmo importantes e centrais. Mas nestas fotografias eu não podia mostrar os seus rostos e isso deixou-me frustrada. Então, peguei num alfinete e comecei a arranhar por cima dos círculos. Foi uma forma de mostrar que não é apenas uma forma. Quis mostrar que foi algo forçado e que eu não tinha ficado nada contente com essa decisão.
© Newsha Tavakolian
A fotografia da menina a cheirar uma rosa é das que mais se destaca na exposição, uma vez que apresenta várias técnicas diferentes. Que técnicas artísticas são essas?
Essa era uma fotografia antiga, de 1997. Tirei-a num comício presidencial, onde essa menina estava para apoiar um candidato. Era a primeira vez que as mulheres iam votar, por isso davam e distribuíam rosas vermelhas a todos os jovens que votavam pela primeira vez. Eu também tinha 16 anos quando tirei o retrato.
Essa imagem é como a mudança de forma, de cores. É como se eu imprimisse a imagem e depois a quisesse matar com um produto químico, mas a imagem não quisesse morrer. Ela mudou de formato, mudou as cores e depois, no final, transformou-se em abstração. Acabei por rasgar a imagem e depois colei-a novamente, porque senti que afinal ela deveria viver.
Outra técnica que utilizo nas minhas fotografias é pintar por cima delas para trazer um pouco de cor à escuridão, tal como fiz no último retrato do meu pai.
Sabemos que nem tudo o que acontece no Irão é transmitido pelos órgãos de comunicação ocidentais. Esperas que o teu trabalho mostre a realidade do teu país?
Já não faço fotojornalismo há muitos anos, mas o que faço é contar histórias de uma forma criativa com recursos visuais. E sim, gostaria que cada vez mais pessoas vissem o meu trabalho e compreendessem o Irão e o que está a acontecer.
Mas, na verdade, considero ainda mais importante mostrar o meu trabalho aos iranianos e fazê-los pensar. O público ocidental é muito importante, mas eles têm sempre uma ideia diferente do que se a dentro do Irão. Agora, quando mostramos o nosso trabalho aos iranianos que lá vivem e falam a mesma língua, penso que é mais benéfico para a sociedade.
E como é que achas que os iranianos interpretam a sua própria realidade?
Eles não estão cegos de forma alguma, mas mostram uma narrativa diferente. Mostram que têm raiva, mas a raiva não muda nada. Temos de fazer as pazes com o que nos está a incomodar, e para seguir em frente, temos de voltar ao ado, cavar fundo e tentar perceber o porquê. E quando se percebe algo, é mais fácil deixar ir. Mas quando simplesmente colocamos a raiva ou a frustração debaixo do tapete, e não a tentamos compreender, ficamos com um trauma no corpo.
Penso que a mensagem aqui, e corrige-me se estiver errada, é que não podemos mudar os conflitos, as tensões, os protestos, mas podemos mudar a forma como nos sentimos em relação a isso.
E o mais importante: podemos mudar a forma como nos tratamos a nós próprios. Isto acontece em todo o mundo. Existem problemas em Portugal, na África, na Ásia, no Irão. Será que realmente devemos ser vítimas de todos estes políticos? Temos de ser mais inteligentes do que eles, e temos de os confrontar e mostrar o que estão a fazer de errado. Mas, ao mesmo tempo, também temos de cuidar de nós, da nossa saúde mental e do nosso bem-estar. Vivemos sempre zangados por causa dos políticos e da confusão que estão a fazer neste mundo, o que não é bom, porque depois fazes todas as tuas coisas com reação. Assim nunca conseguimos realmente aprofundar algo, porque tens de reagir a torto e a direito a tudo, o tempo todo.
© Newsha Tavakolian
Como mulher iraniana, que desafios enfrentaste ao longo da tua carreira, que começou quando tinhas apenas 16 anos?
Os meus desafios não aconteceram porque sou uma mulher iraniana, de todo. Na verdade, as pessoas ajudaram-me muito, porque eu era mulher e era jovem. Os meus colegas foram gentis e partilharam as suas experiências. Aprendi fotografia com os meus colegas do jornal. Sou muito grata por isso.
O problema é que a sociedade, a sociedade iraniana, nunca tolera mulheres com câmeras nas mãos. Fomos a primeira geração a ir ativamente para todo o lado com uma câmara, eu e mais cinco ou seis fotógrafas. Então abrimos a porta a muitos jovens, muitas mulheres fotógrafas. Éramos profissionais, trabalhadores e também muito justos. E penso que ajudámos a geração mais nova de fotógrafos a trabalhar com muito mais liberdade do que nós.
Só queriam uma imagem que mostrasse o contraste entre a sociedade iraniana conservadora e os jovens que querem estar na moda. E a certa altura percebi que estava apenas a repetir a mesma coisa
Mas à medida que a tua carreira se foi desenvolvendo, quais foram os principais obstáculos que enfrentaste?
Quando a minha carreira se estava a desenvolver, o meu principal obstáculo era, na verdade, estar cansada de mostrar o Irão aos media ocidentais porque não conseguia aprofundar mais nenhum sentido. Eles só queriam uma imagem que mostrasse o contraste entre a sociedade iraniana conservadora e os jovens que querem estar na moda. E a certa altura percebi que estava apenas a repetir a mesma coisa. Estava cansada disso e sabia que tinha mais para dizer. Foi aí que deixei o fotojornalismo de lado. Trabalhei apenas em projetos de longa duração e também pratiquei uma forma mais artística e criativa de contar histórias. E estou muito feliz por o ter feito.
O que te apaixona na fotografia?
A fotografia é muito interessante. Primeiro, pode transformar-se numa janela por onde podes olhar para fora e também pode transformar-se num espelho por onde podes olhar para dentro. E eu adoro isso. Adoro a arte em geral, não apenas a fotográfica. É também a forma mais pura de expressão quando se faz arte. Para mim, tirar fotografias é como cantar, é como vir de um sítio cheio de coisas que se quer dizer e de emoção. É desafiante, mas eu adoro.
© Newsha Tavakolian
Como uma mulher que realmente cresceu no Teerão e viu o conflito a acontecer, que mudanças tens vindo a testemunhar ao longo do tempo?
Sabes, não foram só conflitos e protestos. Foi também muita vida e memórias com amigos, festas, família, viajar para o Mar Cáspio, ir para o sul do Irão, ir para o norte, ir para as montanhas. Sim, é um país onde há sempre problemas, mas também há a vida, as pessoas que vivem em todos os lugares do mundo. E o poder desta vida é tanto que me dá a sensação de que não quero deixar o Irão, quero estar lá e quero aproveitar o bom tempo. Quando o tempo está bom, quando as pessoas estão felizes, eu fico feliz. Quando chove, fico contente porque a terra já não tem sede.
Mas a principal diferença que posso destacar é que as mulheres iranianas se tornaram extremamente corajosas e incríveis ao longo do tempo. Estou a viajar pelo mundo por causa do meu trabalho. Tenho a possibilidade de sair do Irão. Pagam-me, compram o meu bilhete para ir para outro país filmar. E, portanto, a minha situação é bastante rara no Irão.
As jovens que vão trabalhar todos os dias, vão de autocarro, vão de metro e depois são confrontadas por outras pessoas, porque não estão a usar o hijab, continuam a lutar e a trabalhar. Estou impressionada com a sua resiliência, com a sua persistência e bravura. E isso dá-me muita esperança.
Temos de aproveitar esta liberdade e este direito precioso que conquistamos. Eles não nos deram. As mulheres ganharam-no
Acreditas que os direitos das mulheres serão algum dia salvaguardados? Não apenas no Irão, mas em todo o mundo.
Não, nós mulheres devemos ter cuidado. Não falo apenas no Irão. Em todos os lugares. Em Portugal, na Holanda, em todo o lado. Temos de aproveitar esta liberdade e este direito precioso que conquistamos. Eles não nos deram. As mulheres ganharam-no. Se não cuidarmos dele, ser-nos-á retirado imediatamente. Portanto, é um brilho muito precioso nas nossas mãos, e não devemos deixá-lo partir. E é uma responsabilidade de todas nós, de todas as mulheres.
Mas achas que os media ocidentais não mostram realmente as coisas boas que acontecem no Irão, mostram apenas os conflitos e os protestos?
Sim. É o seu trabalho: procurar as pessoas, os problemas… Mas não nos podemos esquecer que, além dos conflitos, existe vida. E acho que temos de mudar a narrativa da nossa história. Não falar só da tristeza, dos problemas, mas também empoderar os iranianos, falar da sua bravura e da luta que estão a enfrentar. Eles não desistem e seguem em frente. Eu acho que isso é muito poderoso.
Quando as pessoas saírem da exposição 'And They Laughed At Me', o que esperas que aprendam?
Eu realmente não espero nada. Só espero que não se riam de mim [risos].