"Inconsciente Político: Como cresceu a extrema-direita em Portugal"Nos últimos anos, Portugal tem assistido àquilo que durante muito tempo se julgou impossível: o crescimento eleitoral e simbólico da extrema-direita. O fenómeno já não é apenas europeu ou global. Está entre nós, com linguagem própria, rostos reconhecíveis e presença quotidiana nas redes sociais, nos parlamentos e, sobretudo, nas conversas de café.
A pergunta que se impõe é: o que nos diz isto sobre o país que somos — e sobre os afectos que nos atravessam?
A análise política tradicional oferece algumas explicações plausíveis: desilusão com os partidos tradicionais, impacto das redes sociais, desigualdades económicas, insegurança cultural. Contudo, há uma dimensão que, frequentemente ignorada, pode lançar luz sobre este fenómeno: a dimensão psíquica e inconsciente do laço social e do comportamento político.
É aqui que a Psicanálise pode contribuir com um olhar menos imediato, mas talvez mais profundo.
Quando o ego é frágil, o ódio organiza
Como lembra Freud no seu texto 'Psicologia das Massas e Análise do Eu' (1921), em momentos de incerteza, os indivíduos tendem a buscar identificação com figuras fortes e grupos coesos. O 'Eu', ameaçado pelas contradições da realidade, alivia-se ao dissolver-se na massa — onde deixa de ser responsável por si mesmo, sentindo-se protegido por uma autoridade que promete ordem e sentido.
A extrema-direita oferece, exactamente, isso: um líder sem ambiguidades, uma identidade clara, uma comunidade imaginada onde há pertença e exclusão. Para quem vive num mundo acelerado, precário, complexo e incerto, este 'pacote' pode ser altamente sedutor.
Além disso, o sujeito contemporâneo está muitas vezes marcado por um sentimento difuso de impotência e de perda simbólica. Perante um mundo onde as referências tradicionais ruíram — família, religião, trabalho estável, Estado providência — há uma nostalgia por um ado idealizado e a necessidade inconsciente de encontrar um culpado pela desordem.
O 'Outro' como inimigo: projeção, segregação e ódio
A extrema-direita cresce onde o laço social se fragiliza. E faz-se forte ao explorar o medo e o ressentimento. Imigrantes, minorias, elites culturais, feministas, ambientalistas — qualquer grupo pode ser designado como inimigo simbólico, sobre o qual se projeta tudo o que é vivido como ameaça à integridade narcísica do 'Eu'.
Freud já nos advertia para o "narcisismo das pequenas diferenças" — a tendência de odiarmos mais intensamente quem está próximo, mas é diferente. A psicanálise mostra que o ódio ao 'Outro' é, muitas vezes, um ódio ao que em nós mesmos é estranho, ambíguo, indesejado. O fascínio pela pureza, pela ordem e pela força, esconde uma profunda angústia perante a diferença, a fragilidade e o desejo.
É neste sentido que o bolsonarismo e o trumpismo, por exemplo, ou os seus equivalentes locais, não são apenas fenómenos políticos, mas sintomas coletivos de uma organização psíquica defensiva, que recusa o conflito, o limite e o inconsciente — e, com isso, recusa também a democracia em sentido pleno.
Portugal: O que nos diz este sintoma?
O crescimento da extrema-direita em Portugal não é um acidente. É um sintoma com sentido. O mal-estar acumulado com as desigualdades, a corrupção, o abandono de zonas rurais e interiores, a sensação de que “ninguém nos ouve”, tudo isso constitui um caldo afetivo fértil para o ressentimento e para a atracção por soluções autoritárias.
Todavia, para além das condições materiais, há algo mais: a extrema-direita soube nomear afetos que quem, habitualmente, nos governa, ignorou ou desvalorizou. Raiva, frustração, medo, desejo de reconhecimento. Não basta ter razão política ... é preciso ter escuta afetiva. A Psicanálise recorda-nos que o sujeito não adere apenas a ideias: adere a discursos que o tocam no seu inconsciente, que respondem (ainda que de forma distorcida) a uma dor, a uma perda, a um luto.
Entre a escuta e a ação: O que fazer?
Se a extrema-direita cresce como sintoma, é preciso escutá-lo — não para o legitimar, mas para o interpretar. Não basta fingir que ele não existe, desqualificar quem o representa, ou reagir apenas com escândalo moral. É necessário construir um discurso político e cultural que reconheça a angústia, que acolha o conflito e que resgate a possibilidade do laço.
A democracia — como a Psicanálise — exige tempo, palavra, escuta e simbolização. E exige também que saibamos lidar com a falta, com a ambivalência e com o desejo — sem nos refugiarmos em fantasias de pureza, força e controlo.
A ascensão da extrema-direita é, assim, um sinal do que não foi escutado — nem na política, nem nas famílias, nem nas instituições. Escutar esse silêncio, nomear o mal-estar e construir respostas que não o neguem, mas o trabalhem, é talvez o grande desafio do nosso tempo. Um desafio, marcadamente, psicanalítico."
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